Sapatos vermelhos


Por: Maria Emília Bottini

Dia desses preparava o almoço com a televisão ligada. Ouvia, de forma distraída, ao noticiário diário, pois atualmente as más notícias predominam, mas não ouvir, não significa que não existam. Uma imagem chamou-me a atenção: eram pares de sapatos espalhados pelo chão da calçada e alguns eram vermelhos, minha cor favorita, então resolvi dar atenção ao que viria a seguir.

Era uma homenagem às mulheres que sofreram algum tipo de violência. Pares de sapatos foram espalhados no Parque da Redenção, na capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Os pares de sapatos estavam representando bem mais que a vaidade feminina, faziam menção à intensa quantidade de mulheres vítimas da violência no estado, que não é diferente de outras capitais desse país varonil.

Uma das entrevistadas afirmou: “se você parar para pensar são as mulheres que nunca mais vão pegar seus sapatos”. Achei essa frase comovente e tocante. Ela pesou em mim. Nunca mais vão pegar seus sapatos porque foram mortas ou não puderam resgatar seus pertences. Também sou mulher e já atendi muitas mulheres vítimas de violência doméstica com várias consequências para sua prole. Uma dor que não é amenizada sem muito falar, muito chorar a dor de ser mulher em uma cultura machista e, por vez perversa, que mata a autoestima das mulheres que permanecem vivas.

De fato, as mulheres que morrem vítimas de violência, não podem mais fazer o ato simples de calçar seus sapatos e caminhar, seguir em frente porque sua história foi interrompida, em quase 80% dos casos, por alguém que ela conhecia e lhe era próximo e que muitas vezes jurou-lhe amor, decidiu colocar fim à sua existência.

Esse ato foi inspirado no Movimento Sapatos Vermelhos, o qual espalhou pares de sapatos ao redor do mundo, pedindo a investigação dos assassinatos brutais de mulheres ocorridos no México, na década de 90.

No Rio Grande do Sul, os dados anunciados pela Secretaria Estadual de Segurança alertam que as agressões corporais aumentaram 14,3% e estupros 6,9% no período de janeiro a setembro desse ano. Somos seres violentos, mas somos especialmente mais violentos com as mulheres.

Alguns depoimentos foram dados sem aparecer os rostos, pois são obrigadas pelo medo a se esconder, se proteger. Ao exporem seus rostos na televisão podem ser encontradas e mortas por seus agressores. Suas falas são da dor que a violência traz por vezes aniquilando possibilidades, tornando-as impotentes diante dos maus tratos cotidianos e a longo prazo. Como podemos observar a seguir: “Eu perdi minha liberdade, minha vida e sofri muitas agressões também, físicas e psicológicas principalmente. E estava me sentindo sem rumo, sem autoestima nenhuma e sem vontade de viver principalmente”.

“Hoje sou um caso vivo, “podia” não estar aqui hoje. Eu tenho 82 queixas contra ele. Tenho tentativa de assassinato e ele continua solto”.

Nesses dois relatos pode-se avaliar que a violência deixa suas marcas profundas e difíceis de serem tratadas, a prejudicar relacionamentos futuros e educa muitos filhos na violência, muitas vezes repetindo histórias e violentando esposas, filhos, sociedade. Isso é tudo o que aprenderam em suas vidas, em suas infâncias violentadas. Alguns conseguem romper o ciclo de violência quando se dão conta de suas dificuldades; outros seguem em infindáveis repetições pela vida a fora. Triste realidade a condenar mulheres por serem mulheres, numa sociedade que ainda as concebe como alguém que deve obediência aos seus pares.

O desejo é de poder seguir em frente, como nos aponta outra entrevistada: “Eu quero voltar a viver, eu quero voltar a estudar, quero voltar a trabalhar, eu quero colocar os meus filhos de novo na escola. Porque eles não podem, eles estão trancados dentro de casa. A gente fica trancada dentro de casa enquanto eles estão na rua”.

Caminhar com sapatos de todas as cores ou mesmo descalças e sentir a terra firme sob seus pés e não estar sob a terra, imóveis, sem movimento algum é o desejo de muitas mulheres. Para muitas só fica no desejo, pois foram impedidas de seguir caminhando.

Imagem capa: Pexels

Colunista:

Maria Emília Bottini
CRP nº: 07/08544

Formada pela Universidade de Passo Fundo (RS);
Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF);
Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB);
Autora do livro “No cinema e na vida: a difícil arte de aprender a morrer”;
Assina a coluna “Trocando Ideias” do blog da Clínica Ser Saúde Mental de Brasília.
Contatos:
emilia.bottini@gmail.com.
Página do livro:
Facebook.com/Nocinemaenavidaadificilartedeaprenderamorrer
Clínica Ser Saúde Mental – Coluna Trocando Ideias:
http://sersaudemental.com.br/blog/

*Ao reproduzir este conteúdo, não se esqueça de citar as fontes.


Gostou deste conteúdo? Compartilhe nas redes sociais!
Cadastre-se também na opção “Seguir Psicologia Acessível”e receba os posts em seu e-mail!


PNG - ONLINE IMAGE EDITOR - Copia.png

Sobre o Psicologia Acessível (saiba mais aqui).

Deixe um comentário (seu e-mail não será publicado)